As ginásticas dos panos amontoados no canto da oficina perfaziam a existência ativa de Dona Maria do Aconçoalho, uma jovem senhora que costurava para todos os que a procuravam com seus mosquetes de existências diárias, pois ali se encontrava uma agulha sempre afiada e pronta a perfazer, em linhas, o que o tempo partira.
E essa, todos diziam, era a profissão mais próxima de sua inclinação, de sua maestria em costurar a vida, pois começara a algum tempo por costurar a si mesma desde que morrerá seu fiel provedor, o sinhô Paulo Aconçoalho, oriundo das arábias e que tivera o nome refeito ao adentrar-se num leito de prosódia lusofônica, pois todos da família, da então Maria da Caixa d Água, achavam estranho o seu antigo nome, impronunciável a muita gente, algo como Al´Buriçakterà, ou algo um pouco mais estranho. O mesmo Al´Buriçakterà que morrera no dia do parto de Paulo Aconçoalho Filho, o único e derradeiro rebento dos Aconçoalhos. O mesmo fora muito bem criado por dona Maria, e logo cedo destinado a recolher as imortais aventuranças deixadas pelo velho pai como herança histórica de sua existência local, ali, nas redondezas da pacata Cercânnia, cidade inspiradora e repleta de lendas, onde viviam os Aconçoalhos.
E Filho bem sabia o ‘por que’ de ser sua mãe, a melhor costureira da região; ela fora ensinada na arte da costura pelo seu falecido pai, que aprendera de sua falecida avó paterna, e essa com um senhor persa de nome e origem desconhecida, e que havia tido existência às margens do rio Tigre, de onde não saia nem para ir ao banheiro, e era, dentre todos os que viviam ali, o melhor, um exímio criador e vendedor de bicho-da-seda, razão pela qual os mais chegados o chamavam de Seu Sedoso.
Mas a questão da inclinação de Maria era bem outra que a herança artesanal que fora repassada por via do senhor Paulo, ela lhe era, antes de tudo, um silencioso modo de passar informações ao serviço secreto, que era tão secreto que não sabemos dizer qual era realmente. Uns diziam que ela tinha um vasto conhecimento sobre cultura egípcia, o que nos levou a crer que ela era uma ramificação cultural do antigo Egito, ainda viva e a tramar os desdobramentos da cultura ocidental que muitos remetiam a Hermes Trimegisto; outros diziam ainda que dali, das linhas, ela produzia um tipo de conexão espiritual, uma conversa com seu falecido marido e toda a trama dos conhecimentos que rondavam sua arte, desde o surgimento da mesma, às beira do Tigre.
E além desses boatos, ainda se observava que dona Maria do Aconçoalho havia, na visão de alguns de seus conhecidos próximos, de Cercannia, posto algum diferencial na criação de Aconçoalho Filho, pois o mesmo era um menino muito distinto entre os demais, e, em sua face sempre se podia observar um segredo velado e, ao mesmo tempo, uma enorme satisfação em tê-lo como algo a ser guardado a sete chaves. E aquilo era demais! E suscitava uma raivosa e silenciosa curiosidade entre os de Cercannia.
Mas ele estava a aprender a arte de costurar, ou de passar códigos na visão de alguns; e, com isso, Filho também começava a entender a miraculância provocada por sua arte doméstica, e ele começava a tramar explicações por conta própria, para si apenas, pois o silenciar lhe fora muito bem ensinado por seu pai. E numa dessas tentativas de entender o velado espanto de seus conterrâneos para com seu silencioso modo de produção, ele se pôs a observar, numa de suas empreitadas explicativas, o declínio das artes privadas criadas e mantidas dentro das casas, das tendas, passando a atribuir, a isso, o enorme e crescente mercado de desejos privados sendo prematuramente difundidos em forma de imagens publicas criadas pelo simples desejo de serem públicos. E o pior de tudo isso era a aparente indústria de interesses que esse mecanismo passou a projetar nos moradores de Cercannia, ao ponto em que, os reservados Aconçoalhos passaram a ser estranhos e nocivos ao olhar público, que não os via muito, que não sabia dos meios em que se davam àquela arte de tramas.
Talvez continue...
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