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quarta-feira, 17 de março de 2021

Reminiscência de um espectador.

 

Já faz muito tempo que algo bizarro me aconteceu, talvez tenha sido até em outra vida, mas o fato foi o seguinte: numa tarde nublada saquei de uma faca e peguei um abacate maduro para degluti-lo, quando ouvi um pavoroso que vinha a certa altura e se aproximava da minha casa, que ficava de fronte a um monte onde costumeiramente se abatia condenados à morte. Me detive com a faca e o abacate na mão e comecei a acompanhar o espetáculo. Eram três delinquentes a ser açoitados pela via, cada um levando uma pesada cruz, eram seguidos por vários espectadores que se deliciavam com o poder do império, com o cheiro do sangue e do suor que banhava a rua. Mas algo estava fora do comum, do normal daqueles shows, pois, dentre os açoitados, havia um que seguia sem parecer sofrer, sem se dar pelas chibatadas, pelas cusparadas, pelos socos e pontapés. Seria um bárbaro? Um bruxo dominador das sensações? Não o sabia bem do que se tratava àquela altura, mas todos eles foram içados em cruzes, e o tal valentão ficou no meio, insensível as dores, e ainda dialogava com os seus comparsas, também crucificados, mas, diferente dele, os outros mal se aguentavam, gemiam como crianças, o que era o esperado por todos que ali se davam ao lazer, mas aquele, o do meio, era um tal que se dizia deus, que atrapalhava os negócios e iludia muitos retardados, com magias e coisas que iam contra os costumes e que até na hora da sua morte ele inculcava a todos que ali estavam, inclusive eu, que ao ficar vendo-o, sem o poder ouvir, esperando o esplendido momento em que a lança adentraria lhe o peito, o olhava e cortava o meu abacate, e sem me dar, deitei o caroço boca adentro, e por alguns segundos ele parou em minha garganta, um amigo me deu uma porrada nas costas e o expulsei, mas ainda hoje, nesse instante de vida, o sinto, como um caroço em minha garganta, e ele me incomoda, e mais ainda, em todas as vezes que me deparo com injustiças, de forma que as vezes penso que aquele ‘bárbaro’ era um justo, defrontado e destruído pelo sabor do poder do espetáculo, da organização do bando humano que se alimenta da dor, do sangue e do suor de seu semelhante.

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