Já
faz muito tempo que algo bizarro me aconteceu, talvez tenha sido até em outra
vida, mas o fato foi o seguinte: numa tarde nublada saquei de uma faca e peguei
um abacate maduro para degluti-lo, quando ouvi um pavoroso que vinha a certa
altura e se aproximava da minha casa, que ficava de fronte a um monte onde
costumeiramente se abatia condenados à morte. Me detive com a faca e o abacate
na mão e comecei a acompanhar o espetáculo. Eram três delinquentes a ser
açoitados pela via, cada um levando uma pesada cruz, eram seguidos por vários
espectadores que se deliciavam com o poder do império, com o cheiro do sangue e
do suor que banhava a rua. Mas algo estava fora do comum, do normal daqueles shows,
pois, dentre os açoitados, havia um que seguia sem parecer sofrer, sem se dar
pelas chibatadas, pelas cusparadas, pelos socos e pontapés. Seria um bárbaro?
Um bruxo dominador das sensações? Não o sabia bem do que se tratava àquela
altura, mas todos eles foram içados em cruzes, e o tal valentão ficou no meio,
insensível as dores, e ainda dialogava com os seus comparsas, também crucificados,
mas, diferente dele, os outros mal se aguentavam, gemiam como crianças, o que
era o esperado por todos que ali se davam ao lazer, mas aquele, o do meio, era
um tal que se dizia deus, que atrapalhava os negócios e iludia muitos retardados,
com magias e coisas que iam contra os costumes e que até na hora da sua morte
ele inculcava a todos que ali estavam, inclusive eu, que ao ficar vendo-o, sem
o poder ouvir, esperando o esplendido momento em que a lança adentraria lhe o
peito, o olhava e cortava o meu abacate, e sem me dar, deitei o caroço boca
adentro, e por alguns segundos ele parou em minha garganta, um amigo me deu uma
porrada nas costas e o expulsei, mas ainda hoje, nesse instante de vida, o
sinto, como um caroço em minha garganta, e ele me incomoda, e mais ainda, em todas
as vezes que me deparo com injustiças, de forma que as vezes penso que aquele ‘bárbaro’
era um justo, defrontado e destruído pelo sabor do poder do espetáculo, da
organização do bando humano que se alimenta da dor, do sangue e do suor de seu
semelhante.
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